Arena Especial, Artigo

Antropofagia de mercado: a manipulação dos preços de moedas no exterior

A leitura do artigo de 3 de março do Financial Times sob o título “Forex trading speeds up moves to computer platform” é uma miscelânea de loucuras. Explico.

Quando imaginei que o mercado internacional já tinha se excedido na manipulação da Libor, escândalo que representou uma das maiores fraudes no mercado financeiro mundial, que aqui passou despercebido, sem nenhuma grande menção na imprensa, a turma mostra que capacidade criativa não é o que falta.

Reguladores nos EUA, Europa e Ásia estão investigando o envolvimento de operadores de mesa e gestores na manipulação do mercado de moedas.

Estamos falando, de acordo com o BIS (Bank for Internacional Settlements), de cerca de 35% do volume global de moedas, que é de US$ 5,7 trilhões, negociados diariamente  por telefone, ou seja, diariamente, cerca de US$ 2 trilhões negociados por operadores e gestores diretamente.

A manipulação levou até o momento à demissão de 22 traders e criou demanda para uma regulamentação mais eficiente desse mercado, patrocinada pelo Financial Stability Board, mas pressionada por políticos, incluindo um Ministro Alemão que defendeu a migração obrigatória desses ativos para o ambiente de Bolsa.

A primeira esquisitice do artigo é acreditar que esses 22 traders e gestores iniciaram por conta própria a manipulação do mercado de moedas global. Acho cínico divulgarem que essa manipulação se deu por agora. Ninguém em sã consciência iria montar ou participar de uma fraude dessa proporção, se ela já não fosse algo institucional e se já não tivesse o clássico aparato da tradição. Nesse sentido, responsabilizar os traders, em vez das instituições, é conveniente, mas não é sincero. Me parece que foram demitidos, não pelo que fizeram, mas por terem sido pegos.

A segunda esquisitice é a resposta das instituições. Anunciaram de forma exemplar que vão acelerar a eletronificação desses negócios, ou seja, vão migrar suas operações de “voz” para as já existentes plataformas de negociação.

Cinismo Jesuístico agudo.

A verdade é que as operações de moedas e commodities foram as primeiras a adotarem plataformas eletrônicas nos anos 1990 e, quando em 2000, a eletronificação ainda se iniciava em outros ativos e sua influência era menos que 10% do total, as operações de commodities e moedas tinham um peso relevante. Atualmente, segundo a Greenwich Associates, 74% de todos os ativos hoje já são negociados eletronicamente, então porque, logo nas moedas, 35% ainda se encontram nas mesas de voz? Sem dúvida pela margem, leia-se resultado dos bancos. Uma brecha altamente conveniente. Ali residem spreads importantes para a receita dos bancos.

Na esteira do festival de esquisitices e cinismo que se instalou, vem a resposta oficial de uma das 10 maiores instituições de mercado. Um executivo que preferiu não se identificar afirma que se tivesse 100% dos seus negócios eletrônicos, não ficaria preocupado com conduta, uma vez que os negócios eletrônicos são transparentes por natureza. Então, por que nunca transferiram?

A verdade é que essa migração para plataformas eletrônicas proprietárias se deve por um pânico absoluto de que esse mercado vá para o ambiente de bolsa e “clearing” como contraparte central.

Isso forçaria os bancos, além de uma maior transparência, que já seria uma consequência da migração para plataformas eletrônicas, a perder os benefícios da internalização, e enfrentariam redução de receitas substancial. Ajustes na modelagem de controle de risco e algoritmos são necessários, também podendo migrar para um modelo de “agency”.

O fato é que as negociações de todas as classes de ativos estão migrando para plataformas eletrônicas.

Em ações, segundo a renomadíssima consultoria Tabb Group, 96% de todas as transações serão no modelo “low touch” em 2014, 91% usam análise do custo de transação (TCA) e 61 % escolhem algoritmos em função da eficiência do modelo e não mais do “broker” que o vende.

Mesmo no mercado de renda fixa, tradicionalmente de balcão (over-the-counter, ou OTC), a eletronificação já atinge 43 % das transações.

O fato é que a eletronificação das transações de ativos não é só uma medida de eficiência e redução de custos. É um instrumento estratégico do regulador para aumentar a integridade e segurança dos mercados. Não podemos ter uma postura misoneísta amparada na tradição ou costumes em um setor onde o dinamismo e modernismo são o cartão de visitas.

O abuso de práticas antiéticas do mercado não ajuda no seu real desenvolvimento. É mandatório que ajamos para desenvolvê-lo de forma consistente e ativa. Essa figura do espertalhão do Lobo de Wall Street não normatiza nosso mercado, nem tampouco ajuda na discussão de seu desenvolvimento. Não há solução fácil e esses escândalos pouco ajudam no fortalecimento do mercado.

Corroboro com a chacoalhada que os reguladores mundiais estão dando e forçando a migração para sistemas transparentes e de melhor governança.

Não temos mais espaços para esse tipo de atitude, institucional inclusive. Uma manipulação da Libor e do mercado de moedas é algo inaceitável que deveria ser atacado de uma forma muito energética por todos os reguladores.

Por aqui, avançamos. Contudo, não se vê ainda a eletronificação como instrumento de governança, redução de risco e manutenção da integridade de mercado. Nossos mercados de futuros ainda têm negociações maciçamente feitas por telefone, assim como o de renda fixa.

Sistemas de registro têm grande interesse pela sua flexibilidade, sem que haja passivo ou compromisso da empresa que o fornece. A Cetip funciona dessa maneira. Se foi possível uma manipulação dessa magnitude em mercados ultrassofisticados, fico me questionando sobre o nosso, um mercado não eletronificado e altamente concentrado em clientes e produtos e com uma bolsa de registro (Cetip) que pouco fornece transparência sobre suas área de controle e negociação.

Não seria importante o regulador local explicitar como controla, previne e evita uma eventual manipulação de mercados feita por instituições?

Não sou favorável à adesão imediata a todas as práticas internacionais, mas acredito que devamos aprender e nos precaver com erros de terceiros.

Não tenho a menor duvida: é hora de repensarmos o sistema.

Arthur Mario Pinheiro Machado é o autor do Apertis Verbis. Foi sócio da Ágora Corretora e responsável pela criação da primeira área de Electronic Trading do Brasil. É hoje um dos principais executivos da ATG (Americas Trading Group), que patrocina o blog Arena do Pavini. Faz parte do Conselho de Administração de diversas instituições.

 

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