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Distratos caem 27,4% mas ainda preocupam; especialistas temem retrocesso e dão dicas para evitar problemas

Quem compra um imóvel na planta e desiste antes de receber as chaves pode enfrentar dificuldades para desfazer o negócio e conseguir receber de volta valores já pagos na transação. A situação preocupa os consumidores e, principalmente, as construtoras e incorporadoras, já que não existe uma lei que regulamente o direito de distrato, o que cria insegurança jurídica e cada juiz acaba decidindo de forma diferente. Dados da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) mostram que essas ocorrências, que bateram recordes no auge da crise, recuaram 27,4% entre 2015 e 2017, mas continuam em patamar elevado, sobretudo no segmento de médio e alto padrão.

Problema é maior no segmento de médio e alto padrão, diz Abrainc

Segundo o último levantamento da Abrainc/Fipe, considerando todos os segmentos, incluindo empreendimentos residenciais de médio e alto padrão e os residenciais vinculados ao programa Minha Casa Minha Vida, foram registrados 34,1 mil distratos nos últimos 12 meses encerrados em janeiro, o equivalente a 30,7% das vendas de imóveis novos. No mesmo período, a relação entre distratos e vendas no médio e alto padrão chegou a 42,3%, ficando em 16,8% na faixa de menor renda.

Impacto recai sobre a cadeia, do incorporador ao comprador e agentes financeiros

“A questão preocupa muito, pois os distratos atingem toda a cadeia envolvida no segmento da construção civil, desde incorporadores até os compradores e agentes financeiros”, diz o presidente da Abrainc, Luiz Antônio França.

Segundo ele, em alguns casos isso pode impactar a própria obra, que corre risco de ser interrompida por falta de dinheiro, prejudicando o comprador adimplente e também as empresas, sobretudo as de menor porte.

Mercado busca previsibilidade no recebimento de receitas

O executivo defende a regulamentação do distrato como medida necessária e um avanço num mercado que necessita de previsibilidade quanto ao recebimento das receitas. Ele lembra que o segmento responde pela geração de milhares de empregos, diretos e indiretos, e que as incorporadoras lidam com altos investimentos, desde a compra de terreno até a execução das obras em todas as suas etapas.

“Se há uma quebra no fluxo de caixa, o desequilíbrio afeta todos os envolvidos”, completa França, para quem o cumprimento dos contratos deveria seguir regra geral de mercado.

Ambiente favorável depende de juro menor, mais empregos e marco regulatório

Segundo os indicadores Abrainc-Fipe, o mercado imobiliário apresentou discreta melhora no ano passado, em virtude do Programa Minha Casa, Minha Vida destinado ao comprador de baixa renda, que vem mantendo patamares positivos. Em contrapartida, diz o presidente da entidade, o mercado de médio e alto padrão ainda é deficitário, devido, principalmente, à problemática dos distratos. “Enquanto não tivermos um marco regulatório que deixe as regras claras com relação à quebra dos contratos, o setor imobiliário irá ser afetado”, argumenta.

O mercado imobiliário, segundo França, precisa de três pilares para funcionar bem: taxa de juros abaixo de dois dígitos, baixo nível de desemprego e marco regulatório adequado. “Com este ambiente favorável, o setor poderá se fortalecer e continuar a gerar empregos, aquecendo a economia do País.”

Para o Secovi, insegurança jurídica pode dificultar retomada dos negócios no setor

Na avaliação do Sindicato da Habitação (Secovi-SP), a economia brasileira e o mercado imobiliário têm mostrado sinais claros de recuperação gradual e sustentada, mas o avanço do setor ainda sofre com insegurança jurídica, sendo um dos principais focos justamente a ausência de regras para distratos.

Governo federal incluiu regulamentação entre pautas urgentes

Após muita discussão no setor, desde meados de 2015, com várias propostas sobre o tema apresentadas por deputados e senadores, o governo federal decidiu que irá regulamentar a devolução de imóveis comprados na planta. E incluiu o distrato entre as 15 pautas de uma agenda legislativa prioritária que devem ser votadas em 2018, como o marco legal de licitações e contratos (PL 6814), a regulamentação do teto remuneratório (PL 6726) e a desestatização da Eletrobras (PL 9463), entre outras. O Blog do Planalto informa que a nova lei “trará segurança jurídica para os contratos imobiliários e vai proteger o consumidor”.

Especialistas em direito do consumidor apontam retrocesso

No entanto essa não é a visão de especialistas em direito do consumidor que acompanham as discussões. Para Maria Inês Dolci, coordenadora institucional da associação Proteste, o tema ainda exigirá debates. “É um assunto complexo e ainda não se chegou a um entendimento; já foram apresentadas muitas propostas, e muitas delas ruins para o consumidor”, destaca.

O advogado especialista em direito imobiliário Marcelo Tapai, que é vice-presidente da Comissão Permanente de Defesa do Consumidor da OAB/SP, avalia que se for mantido o texto original do projeto de lei que deve ir para votação, será inconstitucional, pois representaria um retrocesso a direitos já adquiridos.

Justiça tem decisões determinando devolução de 80% a 90% do valor pago

Tapai destaca que a justiça já sedimentou, em diversas decisões, que o consumidor tem o direito a receber de volta entre 80% e 90% de tudo o que pagou na aquisição do imóvel, em parcela única e corrigido monetariamente.
“Qualquer lei que determine algo aquém disso é prejudicial. A defesa do consumidor é um direito fundamental e não pode retroceder”, explica. E lembra que as decisões judiciais têm se baseado no entendimento de que ninguém compra um imóvel para desistir do negócio e, se o faz, é porque teve dificuldade no meio do caminho.

Projeto de lei prevê retenção de pelo menos 25% sobre os valores já pagos

O projeto de lei que vai para votação, segundo informação divulgada pelo governo, é o PL 774/2015, do senador Romero Jucá. Pela proposta divulgada, no caso de o comprador do imóvel na planta cancelar o contrato, “seja por falta de condições de pagar ou desinteresse em manter o negócio, poderá arcar com multa de até 25% sobre os valores já pagos ao incorporador. Dos valores pagos, o vendedor poderá reter 5% como indenização pelas despesas com comissão e corretagem. O restante da verba paga, cerca de 75%, deve ser devolvido ao consumidor”.

O texto original, na avaliação de Tapai, é prejudicial do ponto de vista do consumidor, pois determina devolução bem menor dos valores pagos do que existe hoje, e também abriria margem para possíveis manobras jurídicas das construtoras para reduzir o percentual de ressarcimento. “O projeto é muito ruim. Permite à construtora uma retenção de 30%, mas que ainda pode ser maior que isso se a construtora alegar e provar que teve prejuízo.”

Devolução parcelada e com prazo de carência de 12 meses

Outro agravante, segundo Tapai, é que o PL determina que a devolução será em 03 parcelas, com a primeira podendo ser paga 12 meses depois do distrato. “Não há como dizer que o consumidor ficará protegido e receberá a maior parte do dinheiro de volta”, alerta. Ele defende a necessidade de uma edição no texto original do PL, de modo que o direito do consumidor já pacificado atualmente seja conservado na nova lei de distratos.

‘Comprador paga adiantado para execução da obra, sem remuneração’

O advogado argumenta ainda que quando compra o imóvel, o consumidor além de dar um sinal precisa pagar parcelas durante a construção, dinheiro que é usado pela construtora para financiar as obras. “Na prática, é o comprador quem empresta o dinheiro para a empresa construir, mas não é remunerado por isso”, diz. Se a pessoa precisar desistir do imóvel, continua o advogado, o bem, que é e sempre foi da incorporadora, “será vendido a outro comprador, talvez por preço até maior do que havia sido negociado anteriormente”. Portanto, diz ele, não haveria prejuízo para a construtora. “O consumidor não pode jamais ser prejudicado por isso”, completa, acrescentando que a pessoa “não usufruiu e não terá mais a posse do imóvel”.

Regulamentação é positiva, mas precisa garantir direitos já adquiridos

Para Marcelo Tapai, é positivo que o governo queira regulamentar o distrato, até porque muitas construtoras dificultam a rescisão do contrato, o que acaba obrigando o consumidor a ingressar com ação judicial para ter seus direitos preservados. “Sou a favor (da regulamentação), desde que se garanta aquilo que o consumidor já tem hoje, sem retroceder em nenhum direito fundamental já garantido”, completa.

Annalisa Blando Dal Zotto, especialista em gestão financeira, investimentos e mercado de capitais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e sócia da empresa de investimento financeiro Par Mais, acha importante existirem regras claras de distrato. “Isso é necessário para dar maior segurança jurídica a construtoras e incorporadoras, ajudando a impulsionar mais investimentos e geração de empregos”, destaca. No entanto, frisa que a lei de distratos “terá de salvaguardar direitos do consumidor, que é a ponta mais fraca na relação.”

Dicas ajudam a evitar problemas na aquisição e nos distratos

1- A dica mais importante para quem pretende comprar imóvel na planta, na opinião do advogado Marcelo Tapai e também da planejadora financeira Annalisa Dal Zotto, é se planejar previamente, não comprar por impulso nem de forma emocional. É preciso certificar-se da idoneidade dos construtores, das condições gerais do contrato, regras de correção das prestações, das cláusulas em caso de desistência e, por fim, de que se tem condição de arcar com o pagamento das parcelas. Antes e depois da fase de construção, pois muitos problemas têm ocorrido na fase seguinte, ao se buscar financiamento bancário. Importante ainda ter um plano B, no caso de desemprego ou eventuais dificuldades financeiras;

2 – Muita dor de cabeça poderia ser evitada, segundos os especialistas, caso houvesse maior cultura de poupança no País. Dal Zotto alerta que é importante ter uma reserva de segurança, equivalente a pelo menos três meses dos gastos da pessoa ou da família, de preferência aplicados em investimentos com liquidez, que possam ser sacados no momento de dificuldade e repostos logo que possível. Esses recursos não podem ser usados senão para fins emergenciais, portanto, não devem ser direcionados, por exemplo, para dar entrada no imóvel. Ela indica para esse tipo de reserva aplicações em renda fixa, como caderneta de poupança ou Tesouro Selic, lembrando que na segunda opção será preciso recorrer a uma corretora;

3 – Havendo problemas no decorrer das obras, o advogado destaca que, caso a responsabilidade seja da construtora ou incorporadora (atraso na entrega, entrega diferente do contratado), é possível pleitear e receber de volta o valor integral já pago, devidamente corrigido e acrescido de juros, além de pleitear eventuais indenizações por danos morais ou materiais. Mesmo que os contratos de promessa de compra e venda de imóveis na planta tragam em suas cláusulas a impossibilidade de o comprador desistir do negócio, diz Tapai, a lei dá o direito de arrependimento e de rescisão do contrato; as cláusulas consideradas abusivas são nulas, sendo revistas pelo Poder Judiciário. A súmula 543 do STJ estabelece de forma inequívoca essa possibilidade. Esclarece ainda que, nesses casos, a opção entre fazer o distrato do imóvel ou permanecer contratado e exigir indenizações pelo descumprimento contratual é exclusiva do comprador;

4 – Quando a dificuldade é do consumidor, que pode ter perdido o emprego, renda ou o interesse no negócio, muitas vezes sem condições para honrar o compromisso, tanto a planejadora financeira como o advogado destacam que a melhor solução sempre é o diálogo entre as partes. A orientação dos especialistas é procurar a empresa e tentar ao máximo uma composição amigável para resolver a questão;

5 – Caso não haja acordo ou a proposta da empresa seja muito inferior em relação ao que a Justiça tem decidido, será necessário entrar com uma ação judicial. O Judiciário tem concedido aos compradores desistentes o recebimento de percentuais que variam, em regra, entre 80% e 90% dos valores pagos. Essa devolução deve ser imediata, assim que houver o distrato, no valor total e corrigido monetariamente. Quando desiste do negócio e entra com ação, a pessoa pode parar de pagar as parcelas para a incorporadora, pois é feito um pedido liminar ao juiz de suspensão das cobranças que evite negativação do nome. Caso o nome já esteja negativado, é feito pedido de antecipação para a imediata exclusão perante órgãos de proteção ao crédito, num pedido de tutela antecipada;

6 – Outro ponto importante destacado pelo advogado é que, caso não exista um acordo para o distrato ou a pessoa não concorde com os valores propostos pela empresa, em hipótese nenhuma ela deve assinar qualquer documento ou receber qualquer valor da outra parte — sob pena de se caracterizar uma novação e concordância com a proposta que lhe foi oferecida.

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