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Artigo: O Problema da Década II – Capitalismo e Classe Média

Não vi o Oscar. Aliás, nunca vejo. A cerimônia nunca me disse nada, além de um evento de promoção propagandista, cercado de pseudo glamour com fins políticos diretos e indiretos.

Pelo que li, a última foi diferente. Só teve fins diretos.

Se você fizesse parte de um bolão para adivinhar o melhor filme e tivesse que escolher entre um que reflete a política pragmática americana, a compra de votos no congresso, chantagens e o realpolitik interno de deixar Bismarck corado, adicionado à lembrança que a abolição da escravatura passou somente por dois votos no Congresso americano e, um outro, que mostra como os americanos são justos e inteligentes, libertadores do mundo e seus inimigos completamente imbecis, qual você acha que ganharia?

Se ainda há dúvida, a dica final, a apresentadora chamada foi nada mais, nada menos, do que a primeira dama Michelle Obama. E agora ?

The Oscar goes to…

Pois bem, até os americanos disseram que foram além da conta na mensagem propagandista e doutrinária, mas Michelle não estava só nessa cruzada ideológica, esteve acompanhada de seu marido.

No seu segundo discurso de posse, Barack Obama afirmou como real o sonho de igualdade de oportunidades, disse:

“Somos fiéis ao nosso credo, quando uma garota nascida na mais dura pobreza sabe que tem a mesma chance de alcançar o sucesso que qualquer outro, pois ela é americana, livre e igual, não só aos olhos de Deus, mas aos nossos próprios”.

Obama está pesando a mão no marketing.  Nem ele acreditou no que disse. Devem ter demitido o “ghost writer”. Sei que populações precisam de ilusões para viver, pessoas precisam de um ideal maior pelo qual vale a pena se sacrificar mas, de fato, o ideal de igualdade e mobilidade americana não são tão reais quanto se prega, e isso atrapalha que abordemos de forma madura e seriamente o real problema que o mundo enfrenta atualmente, que é como fazer o capitalismo funcionar para a classe média.

Primeiro, é importante separar três conceitos intrinsicamente arraigados, porém diferentes, do ponto de vista prático e social. Igualdade, Mobilidade Social e Nível de vida.

De forma resumida: igualdade tem a ver com distância entre mais ricos e mais pobres, com a dispersão e desvio-padrão da curva. Mobilidade social, com a possibilidade de movimentar-se nos níveis sociais de acordo com seu esforço. E por fim, qualidade de vida, que vai desde serviços básicos de infraestrutura, educação e perspectiva de vida, até a sensação de felicidade.

Aliás, quando vi que, em Davos, os grandes líderes políticos e econômicos começaram a pôr menos peso nas métricas de desenvolvimento (PIB, taxa de crescimento, investimento etc.) para considerar outros aspectos, como bem-estar social e felicidade, dei-me conta que a coisa apertou para os políticos e economistas europeus; sentiram a pressão da classe média.

Voltando ao ponto, os Estados Unidos já não eram exemplo de igualdade, aliás, nunca foram. Já vimos no artigo anterior, baseado no livro La Mondialisation de L’inégalité, que os EUA sempre foram mais desiguais que a França e vários países escandinavos.

Normal, não se espera de uma economia ultracapitalista igualdade. Seria um oximoro.

O capitalismo, por essência, apresenta oportunidades para que cada grupo de pessoas desenvolva o máximo de seu potencial e seja recompensado financeiramente por isso. Mas, é óbvio que nem todo grupo necessariamente quer explorar seu máximo ou está apto a explorar de forma plena as oportunidades que se apresentam. Existem também outras formas de recompensa que vão além do financeiro.

Portanto, é natural e consequência óbvia do sistema capitalista um certo nível de desigualdade.  Veja bem, certo nível.

Acho os Estados Unidos um país interessante, pois é um caso de desigualdade com melhora do nível de vida econômico. Voltando ao de François Bourguignon, veja que se olharmos a distribuição percentual de receita primária da população americana (salários, não conta a valorização via investimentos), no período que vai de 1910 a 1929, 40% da receita de salário ficava com os 10% mais ricos.

A Grande Depressão, sucedida da grande guerra, nivelou essa participação para cerca de 30% até 1980, quando o presidente Reagan adotou a abertura de mercado e uma participação reduzida do Estado.

Como se pode ver, os níveis de concentração só aumentam e chegam a 45% da receita de salário.

É conhecido que o período que se iniciou em 1980 até 2008 foi uma época próspera nos Estados Unidos; a qualidade de vida e os serviços subiram. A classe média, assim como a trabalhadora, viveu “direitinho”.

Mas, isso não reflete uma sociedade igualitária. Veja os números apresentados pela Comissão de Orçamento do Congresso Americano.

Participação dos Mais Ricos na Renda dos EUA

Fonte: World Top Income

Entre 1979 e 2006, a receita média dos americanos subiu cerca de 50%. Contudo, para o quintil mais baixo, o crescimento foi de apenas 10%, enquanto para os mais ricos, ultrapassou 100%. Se observamos os 10% mais ricos, de forma precisa, apropriaram-se de mais de dois terços do produto de crescimento do período!

As mudanças iniciadas em 1980 alteraram substancialmente o modelo de distribuição de renda.

E em termos de mobilidade?  Mais propaganda à vista.

Joseph Stiglitz, renomadíssimo economista, abordou o tema brilhantemente em uma coluna no New York Times, traduzida para o Estadão no dia 20 último.

Ele explica sinteticamente e baseado no trabalho do Brookings Institution que, para os americanos nascidos no quinto inferior da escala de renda, apenas 6% chegam ao topo e 42% ficarão lá durante sua vida. Saliente que a mobilidade é mais baixa que a maioria dos países europeus e que em toda a Escandinávia.

A coisa se torna mais dramática se observamos que o sucesso dos americanos depende mais da renda e da educação de seus pais, do que em qualquer outro país considerado avançado, ou seja, os EUA possuem uma estrutura social que converge para uma estrutura de classes protecionista.

Stiglitz aponta a discriminação persistente e o sistema educacional como causas primárias do problema.

Latinos e afro-americanos, segundo consta, recebem menos que os brancos e mulheres recebem menos que os homens, apesar de mais qualificadas, e constituem um numero ínfimo de cargos de presidência.

Aponta ainda que o esforço em democratizar a educação e seu sistema pós segunda guerra mundial se perdeu no tempo, enquanto se discutia a segregação  racial. E, à medida que esta diminuía, a segregação econômica só aumentava (dado do Stiglitz).

O efeito é que o gap entre os garotos ricos e pobres nascidos em 2001 é 40% maior do que 25 anos antes.

Infelizmente, o discurso de Obama é só discurso. Podemos duvidar que o modelo sugerido pelos EUA ajude a resolver o que chamo de problema da década.

A disparidade educacional acrescenta dificuldades à questão, pois além de termos desigualdade econômica, desigualdade na disponibilidade de oportunidade para todos, agora temos a desigualdade da habilidade de explorar as oportunidades.

Devemos continuar na busca de uma resposta, a americana não tem funcionado.

A classe média apoiará políticas de mais governo. Teremos mais Obamas.

Arthur Mario Pinheiro Machado é o autor do blog Apertis Verbis. Foi sócio da Ágora Corretora e responsável pela criação da primeira área de Electronic Trading do Brasil. É hoje um dos principais executivos da ATG (Americas Trading Group), que patrocina o blog Arena do Pavini. Faz parte do Conselho de Administração de diversas instituições.

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